Já na véspera, zunia o vento tocado a chuva persistente.
Lançaram o aviso amarelo, como se algo de grave estivesse a abater-se sobre os penedos negros do atlântico, mas as espetativas alarmistas dissiparam-se na noite.
Um negrume espesso abafava a luz da manhã, mas os habitantes destas “ilhas de bruma” habituados a dias assim, moldaram hábitos, trabalhos e empresas.
O nosso insulamento amarra-nos à ilha, e quando temos de partir perguntamos inquietos: o avião vem? não vem? e só no aeroporto descansamos, fiados na vontade de Deus.
A chuva e o vento não amansavam. Ponta Delgada reergueu-se para um novo dia marcado pelos efeitos da crise. Homens e mulheres, os poucos que a crise se encarregou de selecionar, enfrentam de cara molhada o vento agreste e correm pressurosos para os empregos que ainda sobram.
Nem olham as montras, que as magras poupanças não dão para devaneios.
As crises aqui chegam mais tarde e persistem tempo demais, quando lá fora surgem raios de esperança...
Lá fora, é longe: duas horas de viagem, tarifas pesadas para quase todos. Há um mundo diferente nas nossas vivências moldadas por séculos de povoamento com gentes da moirama, das Beiras, do Minho, de Trás-os-montes, do Alentejo e do Algarve. Conservamos a língua, a religião e a cultura e a nossa vida enreda-se em vulcões, sismos, mar, chuvas e ventos.
A nossa identidade fez-nos donos das ilhas. Daí não admitirmos que estranhos venham ditar o que devemos ou não fazer, nem explorar as nossas propriedades. Mesmo que seja o estado ou serviços dele dependentes.
Aeroporto de Ponta Delgada
Custa-me a aceitar as imposições da ANA, no aeroporto de Ponta Delgada, corroboradas impiedosamente pela PSP, e o aparente desinteresse do Governo pelas elevadas taxas cobradas nos espaços públicos regionais e na redução dos parques gratuitos. Continuar a abdicar da administração desses terrenos (ao contrário do que fez a Madeira) esquecendo-nos que foi a Região que investiu naquela estrutura, é abrir mão de equipamentos essenciais ao desenvolvimento dos Açores. Deste modo, arriscamo-nos a que a entidade concessionária da exploração do aeroporto, no intuito de rentabilizar, a qualquer preço, os espaços, escape à supervisão das autoridades regionais competentes. E isso não devemos permitir. Nem entendo como é que esta situação nunca foi nem explicada nem inquirida.
Todos os açorianos residentes têm experiências de vida que comprovam o desinteresse e, nalguns casos, o desprezo de entidades estatais e de empresas continentais.
Chegados ao aeroporto de Lisboa, ou somos tratados como passageiros de voos internacionais, ou esperamos pela bagagem cerca de uma hora, como sucedeu esta semana com uma dezena de pessoas. O mais implicante é que os passageiros estão, para ali, revoltados mas calados, sem que haja ninguém a quem reclamar ou pedir ajuda. Abandono absoluto, pese embora as taxas aeroportuárias e de segurança a que nos obrigam.
País de mercadores
Quando saio, levo comigo uma ancora que me agarra à ilha. Confrontado com as adversidades impostas por sociedades ditas mais desenvolvidas, gera-se, dentro de mim, um sufoco, uma revolta, um protesto que me transforma em cidadão de outro país que não deste Portugal, porta escancarada a raças e etnias, a mão-de-obra barata, e a mercadores do oriente e do ocidente.
Os mais novos, procuram os aeroportos rumo a novos mundos, onde concretizem seus sonhos. Os mais idosos passeiam os corpos por ruas e praças, tapam o frio com agasalhos muito usados e encobrem as dificuldades da vida.
Portugal é um país desnorteado, desgovernado, sem projeto e sem futuro.
Enquanto o povo continuar desmobilizado, entristecido e desempregado, há espaço para mercadores e piratas que nos sugarão, alegremente, o pão que nos resta. Muitos vieram do oriente, do ocidente e das áfricas, montaram tendas no centro da capital e ostentam a sua riqueza no Martim Moniz – esse fidalgo que tomou o Castelo de Lisboa aos mouros acompanhado do Rei Fundador.
Quem se pode orgulhar deste destino inglório em que Portugal mergulhou? Os Açorianos não, apesar de há muito, terem rumado a “califórnias perdidas de abundância”, onde afirmam a sua identidade e constroem um mundo novo. E os que ficámos, temos o direito de pugnar pela “livre administração dos Açores, pelos açorianos”, para não sucumbirmos com a pátria.
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